Introdução
Havia uma melodia, pura e infinita, ao mesmo tempo profunda e suave, nascida nos becos do Mindelo para tocar o mundo inteiro. Esta melodia é a de Cesária Évora, a diva dos pés descalços, a rainha das mornas e coladeiras, que fez ressoar a alma cabo-verdiana até nos corações mais distantes.
Nascida em 1941, sua trajetória brilhante começou verdadeiramente aos cinquenta anos. Uma mulher robusta, negra, humilde e envelhecida – tudo o que a indústria musical desconsiderava na época. E, no entanto, dos bares do Mindelo para o palco global, Cesária Évora tornou-se a primeira artista africana a vender tantos discos, um ícone de força diante de um destino frequentemente implacável.
Assim como Billie Holiday, Édith Piaf ou Amália Rodrigues, ela é uma das raras vozes que transcendeu gerações, unindo almas através do poder eterno de sua arte. Esta exposição celebra essa trajetória extraordinária, uma jornada que desafia limites e ilumina o mundo com uma luz intensa e emocional.
Por ocasião do quinquagésimo aniversário da independência de Cabo Verde, a Cidade de Paris e a Associação les Arts Voyagent juntam-se para celebrar a vida de Cesária Évora, através de uma coleção de imagens memoráveis. Uma jornada em preto e branco e em cores, onde cada fotografia revela a profundidade de uma mulher e sua arte.
Do Mindelo e seus bares envoltos em névoa até Paris, a cidade que a elevou e abraçou, cada imagem nos transporta para o universo de Cesária Évora.
Entre, ouça com a alma, sinta a melodia que se esconde nas imagens. Permita-se ser levado por esta jornada visual, entre o refresco e a luz, entre Cabo Verde e o mundo.
Emilie Silva, Les Arts Voyagent,
Curadora da exposição
De Mindelo a Paris :
França, a patria das artes
Paris sempre foi um ponto de encontro de culturas, um lugar acolhedor onde influências, tradições e vozes de todo o mundo se entrelaçam. Cidade de arte e de encontros, oferece a muitos artistas de outros lugares um palco para expressar seu talento. Cesária Évora, a “diva dos pés descalços”, encontrará ali um dos seus mais belos santuários.
Em 1987, em Lisboa, conheceu José da Silva, um francês de origem cabo-verdiana. Ele acredita nela, nessa voz que é ao mesmo tempo intensa e repleta de emoção. Ele se tornou seu empresário e a levou para Paris, onde tocou às portas de gravadoras. Mas as rejeições se acumularam: “A voz é maravilhosa, mas a aparência não é viável”. Ele persiste.
Em 1988, ele lançou Distino di Belita, um álbum inaugural que passou despercebido. Contudo, em 1991, tudo se transformou com Mar Azul, um álbum acústico que capturou a essência da morna. Nesse mesmo ano, Cesária Évora subiu ao palco do New Morning, em Paris. O público era reduzido, mas seu tom era hipnotizante.
Aos 50 anos, ela finalmente dá início à sua carreira internacional. O Théâtre de la Ville em 1992, o Olympia em 1993, o Grand Rex em 2006: Paris a celebra. Em 2000, seu álbum Café Atlantico conquistou o prêmio de Victoire de la Musique.
Paris revelou-se, e ela permanecerá leal a ele. Sua voz ainda ecoa, livre e eterna.
O Théâtre de la Ville, a madrugada parisiense de Césaria Évora
Há momentos em que a conexão entre o artista e o palco se transforma em algo mítico. O Théâtre de la Ville em Paris, esse espaço icónico onde os sonhos ganham vida, foi o cenário do desabrochar de Cesária Évora.
Foi neste local, no alvorecer de sua carreira internacional, que ela se destacou, proporcionando ao público parisiense um encontro memorável com sua voz singular e emotiva. Cesaria Évora foi convidada a interpretar suas mais encantadoras melodias de morna e coladeira no Théâtre de la Ville nos dias 11 e 12 de dezembro de 1992.
Foi neste lugar que a essência do seu canto, essa fusão de força e fragilidade, encantou pela primeira vez o público europeu.
O Théâtre de la Ville seria o palco do seu regresso em março de 2003, quando Cesária, já no auge da sua carreira, se apresentou lá novamente, celebrando um retorno glorioso a este local icónico que a viu brilhar no cenário internacional.
Cabo Verde e Morna
Um arquipélago vulcânico no Atlântico, Cabo Verde é um ponto de encontro cultural onde influências e tradições se entrelaçam. Mindelo, na ilha de São Vicente, tem sido por muito tempo um vibrante centro, moldando uma identidade musical singular.
É nesta cidade que floresceram a morna e a coladeira, expressões musicais onde a poesia e a melancolia se entrelaçam de forma sublime. Cesária Évora, envolta por estes ritmos desde a sua infância, cresceu no Mindelo. Seu pai, músico, a apresentou às melodias cabo-verdianas antes de partir quando ela contava apenas sete anos.
Aos 14 anos, já encantava em bares e descobriu a coladeira com Ti Goy, apresentando-se em rádios e em barcos de armadores portugueses e ingleses.
Em 1975, a independência de Cabo Verde simbolizou uma transformação: o novo regime exaltou o funaná, visto como mais genuíno, enquanto a morna foi relegada a um segundo plano. Cesaria, então, mergulhou no esquecimento e afastou-se por uma década.
Em 1985, ela fez o seu regresso aos palcos com o apoio da Organização das Mulheres Cabo-verdianas, dando início a um retorno gradual. Apesar das adversidades, seu amor por São Vicente permanece firme e inquebrantável. No auge de sua grandeza, ela sempre voltava à sua ilha, leal às suas origens.
A voz do desarraigamento
Sua canção mais emblemática, que consolidou sua fama internacional, "Sodade", do álbum "Miss Perfumado" (1992), é a ilustração perfeita. “Quem te mostrou este longo caminho? Esta longa estrada para São Tomé?” Esta melodia ressoa um dos capítulos mais significativos da história de Cabo Verde: o exílio forçado de muitos trabalhadores para as ilhas de São Tomé e Príncipe e Angola. Considerada uma forma de escravidão prolongada, essa prática perdurou até a segunda metade do século XX.
Embora Cesaria Évora não escreva, ela seleciona com rigor as obras que interpreta. Seu repertório inclui algumas das melhores composições de Cabo Verde, um país onde a literatura crioula se consolidou com originalidade a partir da década de 1930, apesar da severidade do regime salazarista. B. Leza, um poeta maldito de imenso talento, e Manuel de Novas, um dos seus autores prediletos, expressam suas emoções.
Os seus álbuns exploram uma vasta gama de estilos, desde a festiva coladeira até às baladas inebriantes, mas é na morna que Cesária se entrega plenamente. Este registo, entrelaçado com melancolia e recordações, torna-se a sua linguagem, a do desenraizamento e da distância interminável.
Cesária e os seus companheiros de palco
Para além da sua voz, Cesária Évora era uma artista da partilha. No palco e no estúdio, mantinha um vínculo profundo com os seus músicos, que considerava uma verdadeira família. Muitos deles, amigos de José da Silva, a acompanharam ao longo da sua carreira, partilhando com ela uma música entrelaçada de cumplicidade e emoções. Este vínculo singular com os seus músicos é evidente nas fotografias promocionais de Café Atlantico, o álbum mais vendido da sua carreira.
No palco, essa osmose ganha vida, especialmente durante a sua emblemática performance no outono de 1997, no clube Je t’aime, em Mindelo. Este concerto captura a essência da sua arte: uma música vibrante e repleta de vida, onde paixão e autenticidade se entrelaçam. Engraçada e brincalhona, Cesária adorava divertir-se durante os ensaios, mas por trás dessa leveza ocultava uma exigência imensa. Cada sessão de trabalho revelava o seu total comprometimento com a música.
Seu álbum Rogamar, uma obra-prima de sua discografia, incorpora essa harmonia musical. Cada peça resulta de uma alquimia entre o artista, seus músicos e diversos convidados, evidenciando um trabalho coletivo impregnado de sinceridade (apenas no meu painel tríptico).
Ancorada nas suas raízes cabo-verdianas, Césaria Évora cativou um público internacional sem jamais abdicar do calor humano que constitui a essência da sua música.
O impacto de cesaria évora: um legado de encontros e heritagem
Figura emblemática da música cabo-verdiana, Cesária Évora, a “Diva dos Pés Descalços”, transportou a morna e a coladeira para além das fronteiras da sua ilha natal. A sua voz rouca e envolvente tocou milhões de corações em todo o mundo, levando a essência de Cabo Verde aos mais prestigiados palcos internacionais.
Em 1987, o seu encontro com José da Silva representou um ponto de viragem. Qual delas era a estrela da fortuna?
Graças a Cesária Évora, surgiu a Lusafrica, que se firmou como um pilar da música cabo-verdiana e um trampolim para muitos artistas. Seu legado permanece vibrante através de uma nova geração que espalha suas melodias pelo mundo afora. No entanto, Cesária era muito mais do que uma cantora. Com um forte compromisso, ela participou do Drop the Debt em 2003, lutando pelo cancelamento da dívida dos países em desenvolvimento, e tornou-se embaixadora do Programa Mundial de Alimentos. Sua influência transcende a música: ela conecta a diáspora africana e de língua portuguesa, redefinindo o papel das mulheres africanas na indústria musical.
Artista multifacetada, ela cativa músicos de todas as origens e cria duetos memoráveis. De Compay Segundo a Salif Keita, passando por Marisa Monte, Caetano Veloso e Goran Bregović, edifica laços entre culturas, fazendo a morna resplandecer muito além de Cabo Verde.
Na França, ela partilha o palco com Bernard Lavilliers, enquanto no universo lusófono, une-se a Bonga, outra ícone da música angolana, revisitando juntos a canção Sodade.
Por meio desses encontros, Cesária entrelaçou sua morna suave e melancólica com ritmos africanos, latinos e ocidentais, criando um diálogo universal. Além das barreiras musicais, ela uniu pessoas, deixando um legado vibrante e eterno.
Uma Diva dos Pés Descalços
Engraçada, sedutora, generosa, mas acima de tudo, livre. Cesária Évora afirma a sua visão com uma força silenciosa. A sua indiferença às convenções, a sua determinação e a sua desconsideração tornam-se as suas armas. O seu surgimento tardio é um trunfo: ela não anseia pela fama nem pelos artifícios do sucesso. A sua única verdade é a sua maturidade artística, a sua autenticidade plena.
Indo contra a corrente dos padrões, é revolucionária. Sem cálculos ou ambições, ela trilha seu caminho, permitindo que a música se expresse por ela. No dia seguinte aos espetáculos, ela retorna a ser Cesária. O sucesso nunca a transformou. No palco, ela encarna uma presença magnética; Fora da luz, ela continua fiel à sua ilha, à sua rua, ao seu povo.
Seu canto vai além das aparências. Não importa a sua idade, o que veste ou as suas características, o que realmente conta é a sua voz. Uma voz que carrega a essência das provações, mas que conhece como ninguém a arte de acalmar os corações.
Ainda hoje, Cesaria Évora brilha como um verdadeiro ícone. Em Cabo Verde e além, ela representa o sucesso inabalável, o talento genuíno e a simplicidade como uma poderosa força. Seu legado transcende a música: ela continua a iluminar gerações e a abrir novos horizontes.
A sua voz, repleta de vitalidade e autenticidade, continua a trazer calma, motivação e união.